Um dia, já ha algum tempo, eu realizava um aula ou conferência na qual abordava o tão polêmico quanto atraente assunto das almas gêmeas, e tratava da unidade possível entre dois seres humanos nos planos físico, psíquico e espiritual, quando, mais do que apenas atração física e afinidades psíquicas, eles compartilham sonhos e ideais.
Lembro-me de um jovem que literalmente se "retorcia", na plateia, visivelmente dividido entre um desejo de acreditar e um ceticismo vicioso e incômodo, ceticismo este que acabou por lançar contra mim de forma agressiva, talvez até por não suportar carregá-lo sozinho.
Após questionar o argumento por todos os ângulos que alcançou imaginar, sem sucesso, ele resolveu apelar para a artilharia pesada: a famosa falácia do “ataque à pessoa”, último recurso quando não se logra derrubar as ideias de alguém com as próprias ideias. Disparou contra mim a pergunta direta e pessoal: "- Você tem um relacionamento assim?"
Na época, não achei que deveria (e tampouco acho, ainda hoje) abrir minha vida pessoal num contexto como aquele, ante um interlocutor provocativo e predisposto a duvidar. Porém, hoje, trocando ideias com um imenso mar à minha frente, ele me trouxe à tona esta lembrança (sabe-se lá por que mistérios do oceano...) e me veio a indagação: qual seria a minha resposta àquela pergunta?
Talvez eu dissesse: “Deixa eu te contar, meu jovem, como eu vivo e o que tenho. Um dia desses, ao ver uma tempestade desde uma janela, observei como eram belas as árvores fortemente sacudidas pela chuva e pelo vento, e o tapete de folhas que cobria o chão, quando a chuva se ia. Porém, para melhor apreciar a beleza deste quadro, tinha de desviar os olhos de um edifício, grande e grosseiro, que havia à minha frente. O contraste era óbvio: a natureza é bela até mesmo quando destrói; o homem, por sua parte, deixa um rastro feio até quando tenta construir!
Voltei para casa guardando essa simples observação com a alegria e cuidado de uma criança que carrega uma pequena flor; para quase todo mundo, ela seria banal e inexpressiva, mas meu companheiro a ouviu com atenção, e dialogou comigo sobre como a ação da natureza é um reflexo da Lei do Universo (o Dharma, segundo a tradição oriental), e o quanto a ação humana, contaminada pelo egoísmo, é reflexo do Karma, lei de ação e reação, e, por isso, aparece como ‘feia’ ante um senso estético que busca pegadas de harmonia e de identidade. Aquela cena, antes tão irrelevante, virou uma visão das leis do universo, se desenrolando ali, diante de nós... e nos maravilhamos, juntos, com essa reflexão. E assim também se passou com muitas e muitas outras ‘pequenas flores’; um dia, colhidas em um livro, em outro, numa janela etc etc. Tantos dias, tantas palavras belas, tantas visões especiais que somos capazes de evocar e provocar, um na vida do outro...
No campo do psíquico, eu o ensinei a gostar de algumas coisas, como árias de opera e poesia, e hoje, ele possui melhor gosto para selecioná-las do que eu, e vemos e saboreamos juntos os detalhes mais belos de cada uma. Por outro lado, ele me fez amar tudo que é engenhoso e organizado, tudo que se ergue sobre um trabalho persistente e justo, e que bate nas portas da história incansavelmente, até abri-las, por mérito do esforço e da inteligência. Através de seus olhos, amei a figura de Abraham Lincoln, a cidade de São Paulo, a figura mítica de Ulisses... logo eu, para quem, antes, a "Ilíada" se resumia a apenas dois personagens: Aquiles e os coadjuvantes!
Ele me ensinou a ordenar cada tempo e espaço da vida, até o quarto de um hotel onde nos hospedamos por apenas um dia, pelo simples requinte e respeito próprio de não querer estar em meio ao caos.
No plano físico, costumo brincar que sou culpada por vários dos fios prateados de cabelo e as rugas que vão surgindo em seu rosto, como se as achasse feias... para mim, são marcas de uma batalha, e são tão belas... pois sei os obstáculos que deixaram abatidos, atrás de si, e os caminhos que franquearam, para ele, para mim, para tantos...
Ele me ensinou que os ruídos em nossos ouvidos, à noite, muitas vezes são apenas os sons da própria noite que, ao se fazer silêncio fora, podemos identificar dentro de nós, como microcosmos que somos. E esses sons têm embalado nossos sonhos, compartilhados pelas noites afora.
‘-Mas não ha brigas?’, perguntaria o meu renitente rapazinho. Sim, há! Os pequenos (e médios!) ajustes de personalidades, dificilmente evitáveis. Mas, ainda quando brigamos, sinto que, sobre nossas cabeças físicas (às vezes, mais "duras" do que deveriam!), pairam nossas almas, unidas e buscando ainda, enlaçadas, ouvir e compreender os sons da noite, em si, no outro, em tudo... Unidas pelo amor a estes mistérios, elas jamais se separam, e literalmente ‘arrastam’ os corpos a encontrarem novamente o caminho da harmonia, nunca perdida no essencial...”
Talvez o jovem simplesmente cerrasse o semblante, ou desferisse um irônico e sorridente "É mesmo?", para não se dar por vencido. E eu talvez respondesse, também sorrindo: "Quem sabe?"
Por dentro, porém, haveria só serenidade e certeza, pois eu não creio nisso: eu o vivo. E hoje, essa demanda misteriosa do mar (quem sabe se não foi Vênus e sua voz, trazida pelas espumas?) me pediu que eu o transformasse em palavras e tentasse transmiti-lo aos jovens céticos do mundo, como uma oferenda. Talvez se riam externamente, menosprezem e duvidem; mas terá sido válido se alguma voz, de dentro deles, desde bem fundo, em algum momento, chegar a esboçar a pergunta: “Quem sabe?”
abrir frestas para a luz de um grande Mistério que, (quem sabe?), se chame Amor.
Texto de Lúcia Helena Galvão
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